Do contrato clássico que envolve o público e o teatro — o de suspender a realidade por um momento — Anne Teresa De Keersmaeker reclama esse poder que a dúvida provoca no espectador. À consciente unidade de movimentos e significado que envolve “Rosas danst Rosas” acrescenta-se a incerteza das reações. Não há valor nominal que determine a exaustão do movimento, a sua interminável repetição, o poder de uma intensa energia física. E o que existe de padronizado no nosso quotidiano, na relação das expressões corporais ligadas às práticas mais prosaicas, não é confiável. Como também não é o acaso, o desvio, a geometria do grafismo dos nossos próprios traços. O vocabulário básico, reciclado a cada momento, não descura a atenção reclamada pela expressiva linguagem do gesto. Sim, esse gesto tantas vezes repetido, mas repleto de uma inexorabilidade que insinua.
No mecanismo de “Rosas danst Rosas” existe espaço para o enfado e o aborrecimento, aos quais o divertimento empresta a invenção dinâmica. À rapidez de movimentos sucede-se a sua lenta desmultiplicação. Nesta tensão criada, que oscila entre o solo, a solidez das cadeiras e a verticalidade dos corpos, há um fascínio minimalista do movimento que, momento a momento, constrói uma trama de expressões articuladas na mais profunda das paixões. A dança de Anne Teresa De Keersmaeker capta a nossa imediata atenção pela sua austeridade. Durante vinte minutos, a respiração de quatro bailarinas marca o ritmo de gestos que a rotina conhece de cor e que é marca de uma submissão de género que a intensa luta da modernização provoca. E é nesta sucessão de movimento que somos levados a inscrever as nossas emoções. Poderá a repetição levar à alucinação? À confusão ou intriga? ¶
A liberdade expressiva do corpo, própria do modernismo na dança, parece opor-se à rotina levada à exaustão que “Rosas danst Rosas” nos propõe. E se a liberdade que o corpo postula - como equivalência da alma, a ponto de ser a sua própria expressão - encerra em si o paradoxo que significa a perda do seu simbolismo, no minimalismo de De Keersmaeker fica patente o poder que lhe advém da sua inevitável imanência.
(*) Texto escrito para o jornal do GUIDANCE - Festival de Dança Contemporânea de Guimarães